A Direção do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público de Portugal (SMMP), no último dia 26, manifestou-se contra a PEC 37. Na carta de apoio ao poder investigatório do MP, enviada para a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP)A proposta acrescenta um parágrafo ao artigo 144 da Constituição Federal, para estabelecer que a apuração das infrações penais será competência exclusiva das polícias federal e civil.

 

Na carta, o SMMP destaca a importância de uma instituição como o MP ao afirmar que “nenhuma democracia verdadeira pode dispensar um Ministério Público autónomo”.  A direção da entidade discorre, ainda, especificamente sobre a PEC 37 declarando que “questão com que se confronta o Brasil com esta PEC- 37 é de escolha politica pura, que, se apenas encontrar apoio nos interesses que conjunturalmente acabará por servir (que não serão certamente os da Justiça, os da Verdade e os da Igualdade) e não for escrutinada pela razão, pela história e pelos cidadãos, não é legítima”.

 

No texto, o Sindicato observa que a qualidade das investigações criminais, quando realizadas por um órgão de relevância institucional, tal qual o MP, é mais eficiente. “Uma investigação criminal na disponibilidade dos políticos (seja a que nível for) e assim entregue à policia, que o Estado e o poder executivo instrumentalizará com facilidade, está sujeita às contingências das prioridades e das conveniências eleitoralistas e demagógicas ou à razão de Estado, em vez de estar submetida à razão do Direito e da Lei republicana (servidora do interesse público).”  O documento também diz que “Uma investigação criminal entregue à polícia dispensa o contraditório e a intervenção do juiz das liberdades na fase de investigação, privilegia a exibição de resultados (a que custo?) em vez de se preocupar com a sustentação da lei”.

 

A entidade encerra a carta alertando para a ameaça temerária de transferir a competência de investigações exclusivamente às polícias. “Transferir os poderes de investigação criminal e da sua direcção autónoma e independente do Ministério Público para a polícia ou para o poder executivo - que é o mesmo - corresponde a dar passos claros que culminarão num Estado falhado e em desigualdade jurídica, que conduzem a democracia a meras relações de força e ao desprezo do Direito”.

 

Confira abaixo a íntegra da carta:

 

Se o processo penal é o sismógrafo da Constituição – parafraseando uma ideia feliz de Figueiredo Dias, ilustre professor de Coimbra –, a defesa de um estatuto de autonomia do Ministério Público e do seu integral e exclusivo protagonismo num processo de características acusatórias é o que separa Estados autoritários e fascistas de Estados de Direito democrático que valorizam a Justiça e as instituições que a promovem.

 

Um Estado de Direito democrático, para além da cultura e dos factores socioeconómicos, repousa hoje sobretudo no respeito pelos direitos do homem e na instauração de valores de liberdade que são determinantes para manter a força da democracia e, nesta, a legitimidade é cada vez mais partilhada e substantivada, quer através de legitimidade pela imparcialidade, como sucede com estruturas orgânicas independentes de regulação, quer através de legitimidade por reflexividade, como sucede com os Tribunais constitucionais, quer através da legitimidade de proximidade, através de novas formas de governar, contribuindo todas estas formas de legitimação para aumentar o Estado de Direito. O fortalecimento das nações e da cidadania face à globalização desregulada e aos poderes fácticos que a governam reclamam um poder judicial forte e independente, que não se vergue aos interesses dos mais poderosos. É neste quadro que deveremos perceber e enquadrar o papel do Ministério Público num Estado de Direito democrático. Por isso não pode haver ingenuidade: a questão com que se confronta o Brasil com esta PEC-37 é de escolha politica pura, que, se apenas encontrar apoio nos interesses que conjunturalmente acabará por servir (que não serão certamente os da Justiça, os da Verdade e os da Igualdade) e não for escrutinada pela razão, pela história e pelos cidadãos, não é legítima.

 

A investigação criminal, visando apurar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, está totalmente dirigida à decisão de submeter ou não alguém a julgamento e por isso é matéria que em absoluto respeita à justiça e não à administração pública.

 

Uma investigação criminal na disponibilidade dos políticos (seja a que nível for) e assim entregue à policia, que o Estado e o poder executivo instrumentalizará com facilidade, está sujeita às contingências das prioridades e das conveniências eleitoralistas e demagógicas ou à razão de Estado, em vez de estar submetida à razão do Direito e da Lei republicana (servidora do interesse público). Os magistrados têm na fidelidade à lei, à garantia da sua

 

aplicação consistente e harmonizada, à justiça e à verdade, o fundamento da sua actividade, enquanto a polícia tem apenas que obedecer às ordens, sendo os seus dirigentes nomeados pelo poder executivo com base na sua confiança política, constituindo um corpo de titulares de um cargo administrativo com o dever de lealdade política perante quem o nomeia, mantendo-se em funções se e enquanto servirem com agrado os objectivos políticos de quem dependem.

 

 

Sem magistrados do Ministério Público a dirigir a investigação criminal de forma autónoma e independente, numa lógica judiciária estrita, a perseguição do crime ou fica entregue à iniciativa privada das vítimas ou então fica entregue à polícia, com todas as disfunções que a história dos clamorosos escândalos e dos clamorosos erros judiciários revelou ser insuportável à ideia de Justiça. Uma investigação criminal entregue à polícia dispensa o contraditório e a intervenção do juiz das liberdades na fase de investigação, privilegia a exibição de resultados (a que custo?) em vez de se preocupar com a sustentação da lei.

A relevância institucional e constitucional do Ministério Público é diferente e melhor. Ela legitima-se pela confiança que lhe é reconhecida e pela objectividade com que desenvolve as suas funções. Cabe-lhe o poder-dever de promover e defender, nos Tribunais, o interesse público ou geral, legal e democraticamente definido, orientado pela aplicação da lei ao caso concreto, representando a vontade do Estado em realizar o direito, mediante critérios de legalidade, estrita objectividade e imparcialidade, característicos dos órgãos judiciários e parâmetros materiais do exercício de funções por magistrado. O que prevalece é a defesa do Direito e não a razão de Estado, como bem demonstrou o acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que, no caso “Moulin v. France”, salientou que só uma efectiva autonomia do Ministério Público face ao executivo permite considerar este como uma autoridade judiciária, de feição garantística, por não estar na dependência do poder executivo, como sucede com a polícia, que tem que executar as ordens e não dá garantias de respeitar segredos de investigação, de actuar no processo com isenção e objectividade, atributos do Ministério Público democrático. Por isso, só um Ministério Público dotado de funções de índole judiciária garante o respeito pela separação de poderes e implica o reconhecimento das funções do Ministério Público como de carácter judiciário, absolutamente independente do poder executivo.

 

O exercício da acção penal requer um Ministério Público isento e objectivo, o que só é possível de conferir e reconhecer a uma magistratura e nunca a uma polícia. Hoje, em todos os âmbitos transnacionais (TPI ou UE, que no tratado de Lisboa prevê a criação do Ministério Público europeu), a característica mais marcante e consensual sobre a estruturação da acção penal e do posicionamento institucional dos seus actores é a que exige e reconhece ao Ministério Público um estatuto de autonomia funcional e lhe atribui em exclusivo o exercício da acção penal. É assim na concepção inspiradora do Ministério Público no Corpus Iuris que inspirou o modelo de Ministério Público europeu e que reconheceu no modelo português de processo penal (acusatório mitigado e com uma posição institucional do Ministério Público que lhe garante estatuto de autonomia interna e externa) o melhor modelo de concretização de um processo penal europeu, que Mireille Delmas-Marty denominou de exemplar.

 

De facto, só um Ministério Público autónomo pode investigar, levar a julgamento e promover a execução da respectiva pena se estiver em causa o cometimento de um crime cometido por um chefe de Estado em exercício.

 

As experiências mais testadas e mais acolhidas e que servem de exemplos modelares são as que optam por um processo penal de estrutura acusatória mitigada em que ao Ministério Público cabe a titularidade da acção penal mediante a garantia de um estatuto de efectiva

 

autonomia do poder executivo. Só um órgão do Estado com a garantia da autonomia institucional do Ministério Público pode garantir, com significado paralelo, a própria independência dos Tribunais.

 

 

 

Modelos que ignorem essa melhor síntese correspondem a retrocessos civilizacionais e abrem espaço a um direito processual que, a ser exclusivamente protagonizado pela polícia e comandado pelo poder executivo, mistura direito penal com direito de segurança, substitui ao direito penal o direito de prevenção e de segurança, privilegia medidas de vigilância e técnicas de intervenção secretas, criando perfis que abrem portas a medidas de controlo e prevenção em vez da repressão penal a partir do facto e não de uma noção difusa de risco, põe à mercê do poder executivo a gestão politica dos casos criminais, instrumentaliza o direito penal como ferramenta de controlo social e não de garantia e tutela de direitos e em vez da suspeita de um crime teremos os riscos de segurança a justificar perda de garantias processuais penais, do controle jurídico do Estado e da legitimação democrática das intervenções em direitos fundamentais.

 

Por fim, enfraquece ainda mais o poder político, face à permeabilidade deste aos grandes grupos económicos e multinacionais, que têm à sua disposição consideráveis meios financeiros e poder político-económico. Essa permeabilidade facilita os abusos do poder económico, que facilmente se manifestará em mais corrupção, mais horror económico, mais crimes contra o meio ambiente, menos controlo de estratégias empresariais criminosas, correndo-se o risco de se assistir novamente – impotentes – a outras formas de crimes nos mercados financeiros globais, com todos os efeitos desastrosos na economia mundial, redundando ao fim e ao cabo numa transferência de poder do sector público para o privado, que se fortalece por via da privatização, directa ou indirecta (e estas mudanças no Brasil podem ser sintoma disso) de diversas funções públicas, quer pela privatização de sectores de segurança, quer pelo controlo politico, económico ou corrupto dos poderes políticos. A experiência mostra não ser difícil que a representação política democrática possa degenerar numa política fraudulenta que cede ao poder das oligarquias económicas, como há muito adverte Pietro Barcelona.

 

 

 

Neste contexto, a prestação de contas – a que se encontra sujeito o Ministério Público – e as medidas de transparência de actuação e de controlo institucional serão combatidas e malquistas e os mais fracos não terão quem promova os seus direitos. E nenhuma democracia verdadeira pode dispensar um Ministério Público autónomo.

 

 

 

Não podemos esquecer certos episódios, ocorridos recentemente em democracias ocidentais, onde a ideia de Direito e de Justiça foi objecto de total desprezo, como sucedeu no episódio de Guantanamo, aniquilando a possibilidade do Direito como emancipação e a possibilidade do Direito como instrumento de manifestação do consenso legitimador de qualquer poder público. O Direito dissolveu-se, deixou de ser instrumento de garantia contra-maioritário, deixou de respeitar o conteúdo substancial dos direitos de liberdade (liberdade de pensamento, proibição de tortura, liberdade de consciência, liberdade religiosa, liberdade de reunião e associação, etc.) que garantem a democracia contra si própria ou contra o poder da maioria, perdeu legitimidade e assumiu formas criminosas por via da tortura e violação dos direitos humanos. Transferir os poderes de investigação criminal e da sua direcção autónoma e independente do Ministério Público para a polícia ou para o poder executivo - que é o mesmo - corresponde a dar passos claros que culminarão num Estado falhado e em desigualdade jurídica, que conduzem a democracia a meras relações de força e ao desprezo do Direito.

 

 

 

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2013

 

A Direcção do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público

 

 

 

Fonte - Imprensa da CNPG com Imprensa da CONAMP

 

 

 

 






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