Rafael Dias Marques

1. REALIDADE E PERMISSIBILIDADE: OS OLHARES DA SOCIEDADE

Nas esquinas das grandes cidades, ou nos campos interiores do Brasil, as cenas se repetem na ordinariedade da vida: milhares de crianças e adolescentes em situação de trabalho informal expõem suas vidas a inúmeros prejuízos de ordem biológica, social, física e moral, relegando seu futuro às amarras da exclusão social e perpetuando, pois, o círculo vicioso da miséria.

Segundo dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são, no Brasil, mais de 4 milhões de crianças e adolescentes em situações de exploração de trabalho.

Os números são vultosos, no entanto a cena é tão corriqueira que, para a boa parte da população, tal exploração não causa repulsa, ou indignação, ou rechaço. Com efeito, descortina-se nas pessoas, ao reverso, um sentimento de pena, de aceitação e permissibilidade; afinal, é melhor que aquela criança ou aquele adolescente esteja ali trabalhando, buscando um futuro melhor, em vez de estar se dedicando ao roubo, ao crime, às drogas.

E, então, surgem mil e um argumentos para justificar a prática: o trabalho dignifica o homem e afasta as crianças das coisas que não prestam..., o trabalho ensina a criança e o adolescente a serem mais espertos..., o trabalho tira a fome..., entre tantas outras. E esse turbilhão de ideias aturde a alma, o comodismo e a resignação.

Mas será que isso é assim tão natural e passível de aceitação e perpetuação?

Para além dos argumentos antropológicos, sociológicos e biológicos que desconstroem esses mitos de tolerância do trabalho infantil2 e, diante dos lindes temáticos deste breve escorço de idéias, é necessário indagarem-se, num primeiro momento e em especial, os operadores do Direito: como o Direito encara essa realidade? Ou de que maneira essa exploração ingressa no mundo coercitivo e sancionatório do Direito?

É, pois, sob essa forma de olhar o tema, na óptica do Direito, que se vão alinhavar algumas idéias, sempre atentando-se, porém, que este recorte jurídico da realidade jamais pode anular outras miradas, as quais, em conjunto, explicam o problema do trabalho infantil, sua complexidade e entranhamento histórico na sociedade brasileira.

2. E O DIREITO, COMO OLHA, ENTÃO, O TRABALHO INFANTIL? O PARADIGMA DOS DIREITOS HUMANOS

A história dos Direitos Humanos no mundo, em especial após a segunda guerra mundial, é a história de reação aos absurdos. Realmente, os absurdos, no campo da violação dos direitos, é que lançaram, no seio da consciência jurídica mundial, o desejo e a necessidade de se ampliar o objeto do que, até então, se conhecia como direitos humanos – isso tudo atrelado a um sistema protetor e garantidor da fruição de tais direitos. Vêm a ONU e suas agências, multiplicam-se as Declarações de Direitos, as Convenções e Tratados de Direitos Humanos, moldam-se novas gerações de direitos, a exigir cada vez mais do Estado e dos grupos sociais.

Sob essa revolução de compostura, no campo do Direito, é que se define, então, com mais clareza e solidez teórica, um novel paradigma jurídico para enxergar certas realidades de violação: definem-se, pois, os mínimos para se garantir a dignidade da vida do ser humano no Planeta Terra, abaixo do que nada se pode permitir ou transigir.

Dessarte, sob esse signo, os mínimos, um vez violados por ações humanas, são aptos a gerar, portanto, as mais gravosas reprimendas da Ordem Jurídica, pois tais transgressões representam, em si, ataques aos pilares mais basilares do Direito, capazes, inclusive – tal é seu grau de nocividade – de gerar um sistema transnacional de proteção e garantia com a mitigação da soberania dos Estados e da prevalência da Ordem Externa sobre a Interna.

Assim, os Direitos Humanos passam a ser concebidos, com clareza, como normas indispensáveis à garantia da vivência digna, do desenvolvimento e da continuidade existencial dos seres humanos e da humanidade.

No campo do trabalho – e considerando-se todos os absurdos cometidos nos campos de concentração nazistas – houve, por igual, um vigoroso movimento sob os auspícios da doutrina internacional dos direitos humanos. Define-se, com maior robusteza, o paradigma do trabalho decente e do trabalho digno, moldando-se mínimos indispensáveis sem os quais não se poderia falar em dignidade do homem trabalhador.

Dessarte, nesse processo histórico, em especial por conta do fortalecimento da Organização Internacional do Trabalho, de suas normas e da Declaração de Princípios Fundamentais de 1998, criou-se um sistema internacional de Direitos Humanos do Homem Trabalhador, o qual erige o paradigma do trabalho decente como valor fundante das relações de trabalho, paradigma esse que não pode transigir com o núcleo rígido dos mínimos, fincados em quatro grandes pilares: não discriminação, vedação do trabalho em condições análogas a de escravo, liberdade sindical e vedação do trabalho infantil.

Aqui, então, abre-se o ponto de intercessão entre o trabalho infantil e o sistema internacional de direitos humanos, de modo que aquela prática passa ser considerada como ofensa grave à Ordem Jurídica, passível das mais gravosas reprimendas do Direito.

Essa abertura é protagonizada, basicamente, pela Declaração dos Direitos da Criança de 1989 e, fundamentalmente, pela Convenção n. 138 (sobre a idade mínima de admissão a qualquer trabalho e emprego) e n. 182 (sobre as piores formas de trabalho infantil), estas últimas da Organização Internacional do Trabalho, as quais, em nível global, traduzem, pois, o conteúdo do trabalho decente e digno sob o signo da não exploração do trabalho infantil. Todas essas normas foram ratificadas pelo Estado Brasileiro.

Corporifica-se, aqui, o direito humano ao não trabalho antes de certa idade, como mínimo a ser observado e perseguido pelos Estados, cujo objetivo é salvaguardar as crianças e os adolescentes de situações de trabalho prejudiciais ao pleno desenvolvimento de sua pessoa humana, garantindo-lhes, assim, condições dignas para sua plena conformação física, moral, intelectual e psicológica.

No Brasil, esse defluir de coisas da Ordem Internacional foi plenamente absorvido pela Ordem Interna. Com efeito, confirmando a compostura de fundamentalidade daquele direito, a Constituição Federal de 1988, no título dos Direitos e Garantias Fundamentais, no capítulo relativo aos Direitos Sociais, no art. 7°, inc. XXXIII, proíbe qualquer trabalho para menores de 16 anos, salvo, na condição de aprendiz, a partir dos 14. Proíbe, ainda, qualquer trabalho para menores de 18 anos nas atividades insalubres, perigosas ou prejudiciais ao seu desenvolvimento moral. É, pois, um dos marcos constitucionais da teoria da proteção integral e prioridade absoluta de crianças e adolescentes no Direito Pátrio, expressamente enunciada, em toda sua plenitude, no art. 227 da Carta de 1988.

Trata-se, pois, de uma faixa etária em que, por opção constitucional, se reconhece um tempo de não trabalho a fim de que crianças e adolescentes, pessoas especiais que são, possam dedicar-se aos processos formativos de seu desenvolvimento biopsicosocial, característico de tal fase da vida humana.

Disso decorre, então, que, no âmbito do Direito Pátrio, seja por conta dos influxos da Ordem Jurídica Transnacional, seja por mandamento de porte constitucional, o paradigma de análise da realidade de trabalho de crianças e adolescentes deve ser, sempre, o olhar dos Direitos Humanos, vale dizer, o direito ao não trabalho antes da idade mínima é direito qualificado e especial, posto no Ordenamento Jurídico, do qual retira seu fundamento de validade e se informa e se conforma pelos seguintes parâmetros1: fundamentalidade; universalidade e uniformização; inalienabilidade; indivisibilidade; historicidade; positividade e constitucionalidade; sistematicidade, inter-relação e interdependência; abertura e inexauribilidade, projeção positiva; perspectiva objetiva; dimensão transindividual, aplicabilidade imediata; restringibilidade excepcional; eficácia horizontal ou privada; maximização ou efetividade; proibição do retrocesso.

Realmente, não é digno nem decente permitir que crianças e adolescentes possam trabalhar antes dos 16 anos de idade, de maneira a se situarem, num segundo plano, os aspectos formativos de seu desenvolvimento biopsicosocial, tão marcante em tal fase da vida humana, sob pena de, em assim se permitindo, colorir-se, novamente, o quadro perverso da exploração do trabalho precoce dos primórdios da revolução industrial.

É preciso reconhecer, portanto, que o marco civilizatório, centrado nos direitos humanos, a que a comunidade internacional conduziu sob o forte embate dos fatos sociais, não pode se compadecer com o trabalho infantil, pois significaria retroceder na formação de seu conteúdo, moldado que foi pelo fenômeno da expansão da amplitude do princípio da dignidade da pessoa, entendido este e, em última análise, como um conjunto de potencialidades inerentes à pessoa humana e sem os quais não se lhe pode permitir um vida digna.

3. E, NÓS OPERADORES DO DIREITO. COMO OLHAMOS? E COMO DEVERÍAMOS OLHAR?

O Direito, assim, deve olhar a exploração do trabalho de crianças e adolescentes sob o paradigma dos direitos humanos, reconhecendo o direito ao não trabalho antes da idade mínima como direito fundamental, que, uma vez atingido, deve ser prontamente reparado em toda a extensão da reparação.

Todavia, o Direito não olha, por si só, a realidade e nela influi e transforma. Ele é, sob um ponto de vista de análise, obra cultural e, assim, precisa de agentes, pessoas incumbidas da aplicação das normas, pela organização do Estado, vale dizer, os operadores do Direito em sentido amplo.

E como estão olhando os Operadores do Direito o direito fundamental ao não trabalho e o trabalho infantil? Infelizmente, tem olhado com olhos impregnados da permissibilidade, da suavidade, da aceitação. A exclusão, o conformismo social, a discriminação aos mais pobres têm sido, infelizmente, os vetores que direcionam o olhar de uma grande parcela dos atores do Direito, sejam eles Juízes, Promotores, advogados, servidores públicos, estudantes, etc.

Esses olhares podem ser observados nas estatísticas oficiais lançadas no introito desta peça: mais de 4 milhões de crianças e adolescentes trabalham neste país.

E o que é pior: não somente podem se vislumbrar olhares de aceitação, como também divisar mais que olhares. Com efeito, vêem-se atos que estimulam diretamente a lesão a esse tipo de direito fundamental. Isso pode ser detectado no número de autorizações judiciais que vêm sendo concedidas pelo Estado Juiz: segundo dados oriundos do Sistema CAGED, do Ministério do Trabalho e Emprego, de 2005 a 2010, foram mais de 30 mil atos de juízes, autorizando crianças e adolescentes trabalharem antes da idade mínima, muitas delas em atividades perigosas, insalubres e penosas.

Diante desse quadro, o desafio que se põe é, pois, transmutar nossos olhares para a mirada dos direitos humanos. Essa é a ferramenta salutar para que o olhar seja outro; essa é a ferramenta salutar que permitirá, se usada e bem usada pelos operadores do direito, um novo alento no histórico de combate ao trabalho no Brasil.

Com base nela, os membros do Ministério Público podem buscar, por meio de Termos de Compromisso de Ajustamento de Conduta e Ações Civis Públicas, o imediato e prioritário provimento de políticas públicas de atendimento às crianças e aos adolescentes resgatados de situação de trabalho proibido e de suas respectivas famílias. Nessa seara, podem ser destacados como atos do Estado para preencher o conteúdo daquele direito: a escola em tempo integral, a profissionalização protegida e garantida de adolescentes e a geração de trabalho e renda para as famílias. Tem aí especial cabida a busca pelas tutelas específicas, inibitórias e reparatórias coletivas, por meio de dano moral coletivo, já bastante sedimentada na seara de repressão ao trabalho em condições análogas a de escravo.

Com base nessa outra mirada, membros do Poder Judiciário poderão promover e preencher, com efetividade e mais amplamente, o conteúdo dos direitos fundamentais, em especial, do direito social ao não trabalho antes da idade mínima, cobrando políticas, impondo sanções, avançando na tutela coletiva dos direitos de crianças e adolescentes.

Assim, membros da advocacia, nas suas mais variadas expressões, pública ou privada, gratuita ou paga, serventuários da Justiça e estudantes poderão se aperceber do grau de violação que a exploração do trabalho de crianças e adolescente impõe ao sistema jurídico dos direitos humanos e, apercebendo-se disso, poderão ser agentes multiplicadores dessa nova consciência no seio social em que vivem, questionando posturas, mitos e comodismos, denunciando situações, cobrando do Poder Público, exercendo sua cidadania no arrimar de uma sociedade calcada no valor do trabalho decente e digno.

O desafio é que, entre todos esses olhares, prevaleça a mirada garantista e tutelar dos direitos humanos, a arrimar uma nova aurora de vida no futuro das vidas severas desses milhões de meninos e meninas severinos, espoliados pela exploração do trabalho. Onde a enxada seja lápis, os tabuleiros de venda de guloseimas sejam livros, o caixote do engraxate seja um computador; enfim, onde o trabalho explorado seja uma educação redentora de qualidade.

Para tanto, basta um gesto simples: querer olhar diferente. Em seguida, mudanças virão!

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1)

Procurador do Trabalho e Coordenador Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes do Ministério Público do Trabalho. Ex-Juiz do Trabalho e Ex- Procurador do Banco Central do Brasil.

2) 

Para fins deste arrazoado, entenda-se trabalho infantil como toda prestação de serviço realizada por menores de 18 anos, em troca de uma contraprestação remunerada, ou não, mas sempre apreciável do ponto de vista econômico, seja sob a modalidade de emprego, seja trabalho eventual, seja trabalho autônomo.

3)

Diante dos limites editorais informados pela Revista Consulex, não será possível, por questões de espaço, discorrer sobre o conteúdo de cada um desses parâmetros e de que modo eles tocam o direito ao não trabalho, no caso concreto.






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